Criação da ABLV: uma visão pessoal.
por Marcos Sarvat
A meu ver, as instituições por mais realizações e grandiosidade que alcancem, nada mais são além do reflexo das intenções e ações de pessoas, por vezes anônimas ou perdidas na memória coletiva, e por vezes reconhecidas e apontadas, por justiça. No caso, me parece impossível dissociar o relato da criação da Sociedade Brasileira de Laringologia e Voz (substituída pela ABLV), da história de vida pessoal de alguns colegas. Àqueles que possam se sentir incomodados com esse estilo, ou os que não sejam citados (impossível apontar a todos!) peço compreensão e que fique expresso meu antecipado pedido de desculpas, esperando que relevem o fato de que essa versão, sendo escrita em novembro de 2010, passados vinte anos dos fatos, possa ser distorcida por falhas de memória ou influências afetivas ou de eventos posteriores, ou pela simples necessidade (da qual me acusam) de ser conciso. Ora, testemunhas oculares relatam o que viram, ou acham que viram…
Estávamos em 1990, eu havia concluído a Residência Médica em Cirurgia de Cabeça e Pescoço no Instituto Nacional de Câncer (INCa, de 1986-89) e lá permaneci por mais 2 anos como pós-graduando pelo convênio com a Universidade Federal Fluminense (UFF-INCa). Atuei na organização do 1º Simpósio Internacional de Cirurgia de Cabeça e Pescoço realizado no período de 29 a 31 de agosto de 1990, na cidade do Rio de Janeiro, no Hotel Rio-Atlântica, em conjunto com Emilson Freitas, Fernando Dias e Roberto Araújo Lima, colegas que permanecem no INCa até hoje, todos ex-presidentes da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço.
Num breve parênteses, cito que por ter buscado uma formação que englobava a visão ômicro, anatomico-estrutural, inflamatória e benignaö, priorizada pela Otorrinolaringologia (ORL), com a visão ômacro, tumoral e oncológicaö, focada pela Cirurgia de Cabeça e Pescoço (CCP), não conseguia aceitar uma abordagem ôdissociadaö das enfermidades laríngeas, sem que se dispusesse de ambos os olhares; daí ter propugnado pela integração das duas áreas numa especialidade única, numa única entidade ligadas à Associação Médica Brasileira (afinal, somos todos médicos!), como ocorre no mundo todo. Infelizmente esse não foi entendimento dominante ou mais influente, e foi promovido um afastamento entre os que se iniciavam na ORL e na CCP, o que contraria a necessidade da população de pacientes e dos próprios profissionais, em especial em cidades de médio e pequeno porte. E ainda mais que é justamente na Laringologia que se tal ôfragmentação formativaö mais repercute, no lidar mais ou menos competente das questões benignas e suas ônuances vocaisö e das lesões pré-malignas, tumores iniciais e seu imprescindível diagnóstico precoce.
Uma série de médicos de renome da época foram convidados para aquele evento, entre eles os Professores Paulo Augusto de Lima Pontes (da Escola Paulista de Medicina) e Nédio Steffen (da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), ambos otorrinolaringologistas e cirurgiões de cabeça e pescoço que se deslocaram ao Rio de Janeiro às suas próprias expensas e deram notável contribuição. Foi justamente a partir de uma intensa admiração profissional que se estabeleceu uma forte amizade com esses dois mestres, que já atuavam fortemente na área de Laringologia e Voz, em especial como precursores em nosso meio da videolaringoscopia e estroboscopia e da abordagem avançada das posteriormente denominadas por Paulo Pontes ôalterações estruturais mínimasö (assimetrias, microdiafragmas, cistos, sulcos e pontes de mucosa). Nesse momento Paulo Pontes adquiria o primeiro videolaringoestroboscópio, fornecido por Arthur de Almeida, então engenheiro da Bruel&Kjaer, empresa dinamarquesa com sede brasileira em São Paulo, e Nédio Steffen conseguia belas imagens de videolaringoscopia interpondo o microscópio cirúrgico DFVasconcelos no exame clínico.
A partir da crônica insatisfação com o espelho de Garcia, animava o meio otorrinolaringológico e fonoaudiológico da época a possibilidade de obtenção de uma melhor visão da laringe, de detalhes então inimagináveis das pregas vocais em fonação. Tornou-se impossível ignorar essa inovação tecnológica, que possibilitava não somente uma melhor avaliação, mas também documentação, comparação em seqüência terapêutica, demonstração e explicação ao paciente e transmissão de informações técnicas aos fonoaudiólogos, ou relaxando no politicamente correto, fonoaudiólogas, posto que sua imensa maioria era, e ainda é, de mulheres. Vale citar que havia um certo desprezo, minoritário é verdade, pela videolaringoscopia, como sendo ôútil apenas para seduzir a clientelaö, um ôgolpe de marketingö que não traria reais benefícios à prática clínica, o que com o tempo se definiu claramente, e hoje não há prescinda de tais recursos û e se justificou o investimento, ao menos na época, relativamente alto.
A aproximação entre a Otorrinolaringologia e a Fonoaudiologia avançava, a partir da adoção de uma postura científica, anatômico-funcional integrada e menos ôpoética-filosófica-psicologizanteö, e pela evidência de obtenção de melhores resultados clínicos e cirúrgicos pelo trabalho associado, fonoterapia e cirurgia. Abriu-se campo para um diálogo clínico respeitoso e envolvente com fonoaudiólogas, e, no Rio de Janeiro, a partir de Maryse Muller, pude conhecer Edmée Brandi, Ruth Bompet, Ligia Marcos, Irandy Garcia Rosa, Ângela de Castro, Ângela Garcia e Marjorie Hasson, vibrantes estudiosas dos distúrbios vocais û e de sua correção. Reforçado pelo apoio também de Glorinha Beuttenmüller, e após duas semanas de estágio na clínica privada de Paulo Pontes em São Paulo, em setembro de 1990 adquiri o vídeo-estroboscópio, iniciando seu uso em dezembro do mesmo ano. Foi lá que conheci e passei a admirar a competência das fonoaudiólogas Mara Behlau, Silvia Pinho, Maria Inês Gonçalves e Rita Hersan, que se desde então se destacam em seu campo.
Em janeiro de 1991, graças à influência política de Glorinha Beutenmüller, fui liberado de emprego público e viajei para 6 meses de estágio na França, no Serviço de Laringologia do Prof. Louis Traissac no CHR (Centro Hospitalar Regional) de Bordeaux. Ali pude conhecer as técnicas de cirurgia parcial da laringe desenvolvidas por Jean Jacques Piquet, em Lille, França (cricohioidoepiglotopexia, por ex.), e então ainda rejeitadas nos EUA e em nosso
país. Tive acesso à divulgação do 2º Curso de Fonocirurgia ministrado por Guy Cornut (foniatra) e Marc Bouchayer (ORL) em Lyon, com a participação de Minoru Hirano, em 11 e 12 de fevereiro. Esse evento foi uma ôrevelaçãoö, expondo as aplicações clínicas da estroboscopia, esboçando uma nova classificação de alterações da laringe (cistos, sulcos e pontes de mucosa), propondo a integração foniatra-cirurgião e apresentando casos cirúrgicos ao vivo. A seguir participei do Congresso Internacional de Voz, em Besançon (14 a 16 de fevereiro), acompanhado de Paulo Camargo, médico ORL de Curitiba, e logo em seguida o Curso de Terapêutica da Voz, organizado pela Fundação Georges Portmann, entre 14 e 16 de março de 1991, de volta à Bordeaux.
Antes de partir para França, havia cogitado com Paulo Pontes, cuja linha de raciocínio em muito coincidia com a dupla francesa, da criação de uma associação que reunisse os interessados nos diversos aspectos da voz humana. Assim, concordamos e pude convidar ambos para o 1º Encontro Brasileiro de Laringologia e Voz Humana. Assim que retornei ao Brasil iniciamos a organização do evento e os preparativos para a fundação da Sociedade Brasileira de Laringologia e Voz, com a ativa participação de médicos, fonoaudiólogos, professores de Canto e cantores, dentro do espírito de integração e respeito profissional que haveria de prevalecer por anos.
Foram oito as pessoas físicas que arcaram com os custos e riscos do empreendimento (vide certificado da organização): Eu, Paulo Pontes, Nédio Steffen e Emilson Freitas, médicos, e Maryse Muller, Ruth Bompet, Edmée Brandi e Mara Behlau, fonoaudiólogas. Pedro Bloch, notável médico foniatra e grande incentivador da Fonoaudiologia, escritor, teatrólogo e compositor foi por nós escolhido para receber a homenagem anual da nova associação, que reuniu cerca de 1.100 profissionais entusiasmados no Centro de Convenções do Hotel Sheraton, no Leblon, Rio de Janeiro, entre 9 e 12 de outubro de 1991. Vale ressaltar que a estes médicos, fonoaudiólogos e profissionais do Canto, de vários estados brasileiros, devemos o estabelecimento da SBLV como inovadora forma de associação, fórum de troca de idéias, experiências e conhecimentos.
A fundação da ABLV ocorreu durante o evento e foi registrada em livro próprio. O 1º presidente foi Paulo Pontes, que organizou o 2º Congresso Brasileiro de Laringologia e Voz em São Paulo, em 1993 e eu fui eleito seu 2º presidente, organizando o 3º Congresso em 1995, de volta ao Rio. Infelizmente, toda a documentação referente à Sociedade, por mim entregue pessoalmente na sede da 3ª diretoria, foi extraviada e algo de nossos registros se perdeu…
Nesse sentido, ainda mais se perdeu quando do afastamento de médicos e fonoaudiólogos, por distúrbios de comunicação e desavenças sobre atribuições e competências, até hoje mal ou não resolvidas, levando à transformação da SBLV em ABLV, exclusiva para médicos. Em suma, resta clamar que o espírito de Pedro Bloch nos inspire a seguirmos adiante, ousadamente rompendo as fronteiras do conhecimento, em benefício de pacientes e cidadãos e da Sociedade Brasileira como um todo.